Cervejaria Trindade: devota, profana e esotérica
Foi há 800 anos um convento e mais tarde uma cervejeira. De um à outra, as paredes da Trindade contam-nos a história da cervejaria mais antiga do país
Logo na sala de entrada, a natureza dos azulejos levanta-nos questões: isto é uma cervejaria ou uma loja maçónica? É uma cervejaria, a Trindade é a mais antiga de Lisboa, e de Portugal, em funcionamento. Se no bolso do casaco trazia o aventalinho dobrado, desengane-se, ou então fique, cerveja é sempre cerveja e pelo menos pode bebê-la com cenário a preceito.
A história do edifício começa no século XIII, quando nele foi fundado o Convento da Santíssima Trindade para albergar os Frades Trinos da Redenção dos Cativos. Tinham estes frades por vocação resgatar os prisioneiros de guerra ao Mouros, por isso não me admira nada que, para encontrar coragem para a tarefa, não se tivesse começado logo ali a beber, que passar uma frente de batalha para ir buscar compatriotas não terá sido trabalho simples.
O grande terramoto de 1755 destruiu quase que completamente o Convento e outros edifícios da colina; a expressão popular “caiu o Carmo e a Trindade”, usada para descrever catástrofes, refere-se ao derrube destes dois conventos vizinhos. A Trindade foi reconstruída (ao contrário do Carmo, cujas ruínas góticas são visitadas hoje em dia num estado muito semelhante ao que ficou depois do desastre), mas cerca de uma dezena de anos depois foi a vez de um incêndio destruir o Convento, 13 dias apenas depois da reinauguração. Do desastre escaparam apenas a Igreja, a biblioteca e o refeitório, que nos nossos dias ocupa a sala de jantar principal.
A Sala dos Arcos, nos nossos dias, e na foto de abertura a Cervejaria Trindade ainda no século XIX
Maior desastre, e generalizado a todo o Clero, foi em 1834 a Extinção das Ordens Religiosas no contexto da Guerra Civil Portuguesa e dos inícios do Liberalismo político. O grande convento foi parcialmente destruído, ao abrigo do novo plano de urbanização da cidade, e um galego empreendedor, Manuel Moreira Garcia, arrenda ali dois lotes de terreno, um dos quais ocupado pela ruina conventual, para construir a Fábrica de Cerveja Trindade.
O esperto galego aproveitou as paredes restantes do edificado e decorou as fachadas (como vistas ainda hoje) com os azulejos salvos da demolição do mesmo.
A sala de entrada e a primeira a abrir ao público em 1840, revestida a azulejos de teor maçónico
Logo em 1840 abriu ao público um balcão de venda direta de cerveja, instalado na primeira sala do que restava do refeitório dos Frades Trinos. Diz-se que o cervejeiro tinha pretensões a ser acolhido na grande irmandade maçónica e, a atentar na decoração azulejar com que fez revestir as paredes desta primeira sala, tal parece ser muito certo. Toda a iconografia esotérica lá está, o olho e o triângulo em destaque. E em 1863, com a abertura do resto do espaço do antigo refeitório edifício adentro, Manuel Moreira Garcia contratou Luís Ferreira, conhecido em Lisboa como “Ferreira das Tabuletas”, ou seja, “dos Quadros”, para continuar este discurso maçónico nos azulejos novos: as 4 estações do ano e os 4 elementos, representações antropomórficas da Indústria ou do Comércio, entre outras.
A sala central, a que ocupa o espaço do antigo refeitório do Frades Trinos, revestida com azulejos do "Ferreira das Tabuletas", em 1863
Em 1920 a Trindade muda de mãos: depois de herdarem a Cervejaria, os empregados da Fábrica e da Cervejaria constituem uma sociedade com o apoio de José Rovisco Pais, que cedo acabará por se tornar o seu único dono. Com a morte deste em 1932, a Trindade é posta em hasta pública.
Em 1946, já com novos donos, a cervejaria mais antiga do país é ampliada e passa a ocupar também o espaço ocupado pela velha igreja do convento, e um pouco mais tarde, pela fábrica da cerveja. É construída a pequena sala anexa, no espaço do antigo claustro, e a decoração das paredes é pedida à artista Maria Keil, que trabalha o tema das naturezas-mortas, mas trazidas para o seu tempo, para o modernismo puro e duro, quase cubista. E mais, fê-lo ousadamente, na ancestral técnica da pedra da calçada lisboeta, trazendo o chão para as paredes. É para mim a sala favorita da Trindade, desde a primeira vez que lá entrei, há quarenta anos.
A sala de Maria Keil, à esquerda na década de 40, acabada de fazer, e à direita nos nossos dias
Diz-se que “foi a Roma e não viu o Papa”, não é? A Cervejaria Trindade ocupa em Lisboa o mesmo estatuto: vir a Lisboa e não ir à Trindade, nem que seja só entrar, não é ir a Lisboa. Mas não entre apenas, entre, sente-se e peça um bife (são os melhores da cidade, qual nouvelle cuisine qual quê!) e uma girafa, a medida maior em que a cerveja é servida. Depois pode dizer aos seus amigos que sim, que realmente viu e conhece Lisboa.
P:S: e nem de propósito, pode ver na Torre do Tombo, até dia 7 de julho, a exposição “Entre a Cruz e os Cativos – 1218 / 2018”, que comemora os 800 anos da criação do convento dos bravos frades, aqueles que eu aposto que se enfrascavam um bocadinho antes de ir resgatar presos aos Mouros.
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Imagens cedidas pela entidade.
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