Monforte da Beira: uma festa de São João única no mundo
Imagine, burros saltando fogueiras, um grupo vocal espontâneo de gente que não terá continuadores, tanta coisa fantástica tão longe e tão perto
O São João é festa grande no Porto e em Lisboa. Mas é uma coisa institucional já, desenhada para turistas e visitantes, com muito rock e grupos de música consagrados, passeios delimitados e orientados, banquinhas de comida e bebida, tudo very typical, very picturesque, para visitante ver.
Monforte da Beira é uma pequena aldeia no mais interior que se imagine, já à beira do grande maciço espanhol, a um dia a pé do Tejo fronteiriço, em plena divisão geográfica entre o plano Alentejo e a brava serra escarpada da Beira Alta.
A Beira-Baixa é a barreira e a transição entre estas duas tipologias de terreno, que por ser distante, esquecida e interior é realmente o que de mais genuíno Portugal lhe poderá oferecer; esqueça lá as sardinhas de Lisboa e os martelinhos do Porto, isto é Portugal a sério, genuíno até à medula, nada foi desenhado de propósito para turistas, as coisas aqui são como sempre foram, desde há séculos.
Para ouvir enquanto lê, "Macelada" pelo grupo Segue-me à Capela, canção popular da Beira Baixa
A Festa de São João na pequena aldeia de Monforte da Beira, a 25 quilómetros de Castelo Branco, a capital de distrito, é daquelas coisas que parece só poder ser vista em meios como a National Geographic. É uma festa cheia de rituais que se desdobram, literalmente, do dia para a noite, em cerimoniais religiosos e em ritos pagãos. E pode vê-la nos dias 23 e 24 deste mês, sem ser num ecrã: esta é claramente uma celebração bárbara, a que dantes festejava a mais longa noite do ano, o solstício mágico, e de que a Igreja se apropriou e ofereceu a São João, o Baptista, o que batizava.
O estandarte de São João a caminho da entrega anual, a cavalo. Na foto de abertura, com a imagem do Santo menino, um tradicional adufe, como referido adiante no texto.
A festa é sempre oferecida por uma família, a família do Alferes (o mordomo das festas). A bandeira, ou estandarte, do São João, símbolo religioso da festa, fica à janela do Alferes velho (do ano anterior), enquanto começa a festa, a 23 de junho.
Depois do Santo, o profano. Do meio da tarde em diante montam-se fogueiras a intervalos regulares pelas ruas, que pela noite serão acesas e por onde os mais valentes homens e bestas (cavalos e burros) saltarão, certamente encorajados por alguma aguardente de medronho que cresce no monte. Esta prática só aqui tem lugar e é certamente o ponto alto do São João de Monforte da Beira.
No final do dia seguinte, a 24, o Alferes velho entre ao Alferes novo o estandarte do Santo, que a guarda até ao ano seguinte, e ao ritual de passagem.
Devido à desertificação do interior esta tradição esteve este ano em risco de não se efetuar. Em abril não havia ainda candidato a Alferes novo, e a Junta de Freguesia garantiu que asseguraria este posto, se não houvesse propostas.
A parte pagã da festa, onde ardem as ruas e homens e bichos saltam fogueiras.
A música é uma linha definidora da Festa. Também ela em risco de se perder pelos mesmos motivos censuais, a música da Beira Baixa é também ela única e endémica. Feita sempre por coros de vozes femininas, o acompanhamento é feito por adufes, talvez um resquício da presença islâmica. Um adufe é um quadrado com cerca de 50x50x10cm, com uma estrutura de madeira e uma pele de cabra seca e esticada na armação. Pode ou não ter discos metálicos que ajudam à percussão e as mulheres cantam e tocam ao mesmo tempo, e ouvi-las é por si só uma viagem.
O nome Monforte terá como origem, quase evidente, a junção das palavras montee forte, como facilmente o provará a existência, residual, de um antigo castro no topo de um monte em crista bem perto da aldeia. O seu povoamento iniciou-se há vários milénios, facilitado certamente pela proximidade ao Rio Tejo e da Ribeira do Aravil, que permitia campos irrigados, pesca e pastorícia.
Num monte perto foi encontrado um machado em latão, com parca decoração, datado provavelmente de 2000 a.C. e os Romanos, encontrando aqui condições propícias para explorações agrícolas, deixaram também marca relevante, que se traduz hoje em dia em vários achados arqueológicos recolhidos em escavação.
A passagem anual do estandarte do Santo, feita a cavalo.
Nesta, e noutras festas locais, há uma gastronomia tradicional que é obrigatório provar: a rica sopa de grão, chamada de “a dos casamentos”, o cabrito ensopado ou no forno, todos os enchidos de porco, especialmente o bucho, realizado com o estômago (o bucho) do bicho servindo de invólucro a pedacinhos de carne e cartilagens, habilmente temperado e esquecido no canto da lareira, defumando.
Pelo São João há com certeza as Broas com o nome do santo, coscorões aguardentados e um excecional pão de azeite, a Bica, cozido, como tudo o resto, em forno de lenha, com aromas de carqueja e madeira do montado.
Sim, fica a três horas de Lisboa (ou mais, se conduzir como Miss Daisy, como eu), mas o esforço vale a viagem. Isto não é a Austrália, nada fica mais longe que 3 ou 4 horas de viagem.
Foto de abertura por João Silva
Restantes fotos de Luís Adrião
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